sexta-feira, 6 de julho de 2012





Comunicação do Sr. Professor Doutor Adriano Moreira, proferida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no dia 15-05-2012, no âmbito do ciclo de conferências A Europa, uma ideia em construção. - As confluências possíveis num espaço heterogéneo.

                                                                   
                                                                  A CIRCUNSTÂNCIA DO ESTADO EXÍGUO

ADRIANO MOREIRA
Presidente da Academia das Ciências de Lisboa
Presidente do Conselho Geral
da Universidade Técnica de Lisboa


1 – Os desafios à invenção.

A entrada no novo milénio tornou aguda uma interrogação, que passeava discreta pelos textos académicos, sob a designação frequente de – crise do Estado. Muito rapidamente, as circunstâncias mundiais obrigaram a abandonar a discreta atitude crítica, para abertamente discutir se o Estado é uma invenção desafiada pelos factos.

Apenas por lembrança, e para ajudar a clarificar o tema, recordemos que o Estado evoluiu em termos de, desde o Renascimento, se caracterizar por um poder a que chamou soberania e que se analisava na definição de um conjunto convergente de capacidades, designadamente militares, económicas e financeiras, com o recurso jurídico da defesa da jurisdição interna que de facto defendia, os mais frágeis, embora fragilmente, de abusos.

Por muito que os esforços de teólogos, moralistas e juristas, procurassem que um normativismo respeitado assegurasse um comércio pacifico entre os poderes políticos, recorrendo designadamente à hierarquia respeitada, com expressão nos títulos – Imperador, Rei, Grão-Duque, Duque, Conde reinante, etc. – ou às dependências aceites – vassalagem, tributo, protetorado – o primeiro grande esforço a assinalar, que perdurou com relativo êxito até hoje, foi o de considerar a paz como o valor cimeiro de toda a organização, e portanto a paz pelo direito, sem recurso à força, e essa foi a contribuição dos chamados utopistas.

É justamente quando o Renascimento aponta para a soberania absoluta, que as três utopias mais famosas aparecem: Thomas Morus, que no século XX subiria aos altares católicos pela voz de João Paulo II, com a sua Utopia, aparecida um ano antes das 95 Teses de Lutero; Tomaz Campanella, com a Cidade do Sol, cem anos depois de Morus, e Francis Bacon com a Nova Atlântida. Para não alongar a referência, talvez valha como síntese comum a passagem em que Morus declara o regime que procura abolir: por toda a parte, afirma o chanceler experiente e desacautelado de Henrique VIII, “uma certa conspiração dos ricos trabalha contra os pobres”, o que não dava credibilidade à afirmação de que o Estado devesse ser considerado uma Respublica, isto é, como comunidade consolidada pelo bem comum. No fundo, era o conceito nascente de sociedade civil, que levaria ainda séculos a afirmar a sua identidade, e que neste século XXI parece levantar-se contra o Estado, quer no Ocidente que tão longamente se concebeu e afirmou como império do mundo, como por regiões apenas recentemente libertadas do colonialismo, mas não da técnica, como acontece pelo cinturão muçulmano a começar no turbilhão do Mediterrâneo, por muitos países recentes de África, pelo Oriente renascido para disputar hegemonias.

Este objetivo dos modelos daquilo que chamamos hoje sociedade civil, tem por exemplo definição nesta passagem de Campanella (A cidade do Sol, 1623), destacada por Jacques Batzun (Da Alvorada à Decadência, Gradiva, Lisboa, 2003): “Em Nápoles vivem 70.000 almas e, destas, umas escassas 10.000 ou 15.000 fazem algum tipo de trabalho, e estão sempre magras do trabalho em excesso, as restantes tornaram-se presas da ociosidade, da avareza, da falta de saúde, da lascívia, da usura e outros vícios, e corrompem muitas famílias sujeitando-se à servidão para seu próprio interesse”. Talvez não seja difícil encontrar uso para estes termos na linguagem política da crise de hoje, em que a sociedade civil parece crescentemente disposta a reclamar uma relação de confiança com o Estado, que será para isso reformado, e adaptado às novas circunstâncias.

Para isto contribuíram talvez mais, no que toca à doutrina, os teóricos da paz, doutrinadores de uma organização normativa dos vários poderes políticos, que impediria os conflitos armados das soberanias, de que os utopistas, que sem conseguirem afirmar o oferecimento deste patamar, também não contribuíram para que a vida justa e pacifica da sociedade civil fosse liberta da essência do Estado que conheceram: uma distinção entre fortes e fracos, entre os que mandam e os que obedecem, entre os privilegiados do poder e os desmerecidos. As tentativas experimentadas no século passado conduziram às mais destruidoras das guerras registadas pela história (1914-1918 – 1939-1945) e nenhuma delas conseguiu que o sofrimento partilhado por todas as áreas culturais conduzisse à eficácia esperada quer pela SDN, quer pela ONU, embora a lembrança de Kant estivesse sempre presente.

Pelo contrário, aquilo a que assistimos foi ao crescente divórcio e distância entre a realidade e as convicções das potências que supuseram ter ganho a guerra de 1939-1945, em que de facto todo o globo perdeu, e as mudanças da circunstância mundial, ou global para atualizar a semântica, em que nos encontramos vão agravando.

Não obstante a proclamação de igualdade dos Estados na Carta da ONU, o Conselho de Segurança reuniu uma aristocracia de 5 membros, que supunham ter mantido as capacidades hegemónicas que antes da Guerra as distinguiam: sem ignorar a hierarquia entre os cinco, com distinção clara para os EUA e a URSS, mas a França que outros libertaram, e a Inglaterra reduzida a uma ilha relutantemente a aproximar-se do movimento europeu, não podiam ser equiparadas às outras duas com o direito de veto, como se ainda tivessem qualquer capacidade de impor uma hegemonia mundial: a China, da qual ninguém imaginou o crescimento futuro, foi ofensivamente substituída, com nome suposto, pela ilha de Taiwan.

Este desencontro com a realidade viria a traduzir-se no desastrado unilateralismo republicano dos EUA, e na crise financeira e económica que atingiu todo o Ocidente, cujos Estados, sem exclusão dos EUA, finalmente atingidos pela realidade da conjuntura, se viram substituídos por uma multiplicação de poderes ou anónimos ou não previstos por qualquer tratado, como aconteceu com o afamado G20 e o desconhecido diretório financeiro mundial que desafia os governos, determina o presente degradado e o futuro incerto das populações, estabelece novas hierarquias entre as quais se destaca o Protetorado sem verdadeiramente se conhecer o suserano, como acontece com o estatuto a que Portugal foi conduzido.

Os intitulados fundadores, por decisão própria, superpotências, a começar pelos EUA e, mesmo não querendo, a solidária Europa, estão obrigados a repensar o seu verdadeiro poder, porque o Afeganistão, o Iraque, o turbilhão do Mediterrâneo, a desordem de África, a fragilidade da América Latina, e a sobranceria com que todos lhes respondem, já são demonstrações suficientes de exiguidade perante a circunstância mundial. Por isso Barack Obama, em 13 de Abril de 2011, declarou ser “necessário iniciar um processo de exame profundo e de revisão do papel militar dos Estados Unidos no mundo, das missões das suas forças armadas e das capacidades exigidas para as levar a bom termo”. Quando pensamos em Estados como Andorra, Mónaco, Liechtenstein, em pleno Ocidente, todo este em decadência, podemos ter a impressão de que subsistiram, na época das soberanias absolutas, apenas para anunciarem modelos de futuro.

Talvez a primeira manifestação política da exiguidade do Estado esteja na necessidade assumida de se organizarem em grupos, uma designação científica ainda mal assumida, mas suficientemente identificada, para intervir na cena mundial. Os próprios EUA, não obstante manterem a convicção de serem a nação indispensável, a casa no cimo da colina, talvez já tenham compreendido o erro de quebrarem a unidade da NATO com o unilateralismo republicano, tentam dar vida à ALENA (EUA, Canadá, México) não obstante os problemas da fronteira do Rio Grande, redescobrem que o Pacífico é o seu mar histórico, procuram uma aproximação com a China, porque o Pacífico tem de ser dividido. É por isso que a Europa ou salva a unidade ou deixa de ter voz no mundo, porque nenhum dos países da União, nem mesmo a Alemanha, esquecida do seu passado recente, tem voz que se possa fazer ouvir do Atlântico aos Urais, ou no Conselho de Segurança: ou estará a Europa unida, ou a sua voz não será escutada em parte alguma.

Mas esta urgente meditação não se limita aos Estados que perderam estatuto na ordem mundial atingida mortalmente pelas guerras chamadas mundiais e que foram apenas guerras civis dos ocidentais: de facto é uma meditação exigida por todos os Estados, atingindo o próprio conceito de Estado.

Em primeiro lugar, os avanços da ciência sem qualquer precedente equivalente no passado, e a interferência da técnica igualmente a decorrer nesse ambiente de falta de precedente, desafiam a capacidade de numerosos Estado, tal como os conhecemos ainda na viragem do milénio, em face dos desafios da própria natureza, cujos deuses parecem ter decretado a guerra total: lembra a catástrofe terrível de Fukushima, o terramoto, o tsunami, o desastre nuclear, o golfo de Bengala com igual catástrofe natural, o golfo do México, Chernobyl, a fome no sul do Mediterrâneo e a ultrapassar a fronteira europeia desse mar, tudo acontecimentos a provocarem perdas de vidas, de bens e de futuros, sem dimensionamento possível, as exigências de ajuda a ultrapassarem as capacidades mundiais disponíveis, o terrorismo com expressão no 11 de Setembro de 2001, e as suas reproduções em mais de uma das grandes cidades mundiais.

É evidente que não podemos esquecer o terramoto de 1755, mas as multidões atingidas nunca foram tão numerosas, os bens materiais perdidos nunca foram tão avultados, as espécies eliminadas nunca foram tão numerosas, as perplexidades sobre o futuro do homem sobre a terra, e da terra morada comum dos homens, nunca foram tão profundas.

Seguindo a enumeração equilibrada de Jacques Lesourne (L´État submergé, Ramsès, 2012, pg. 89), podemos notar as seguintes exiguidades dos Estados, em relação ao que conhecemos deles ainda no século XX:

1.     Os Estados não são iguais nas suas capacidades de enfrentar os acontecimentos desastrosos, dispondo em regra de recursos financeiros escassos e de capacidades técnicas e científicas limitadas;
2.     Os conhecimentos científicos e técnicos, mesmo partilhados pela humanidade, são insuficientes para as previsões das supercomplexidades da circunstância global;
3.     Tem algum arbítrio distinguir as catástrofes industriais, naturais, de pandemias, ou do descontrolo técnico, etc., porque é frequente a interinfluência e interdependência dos fatores diversos que provocam as catástrofes;
4.     O desenvolvimento da técnica, com efeitos mal sabidos sobre a saúde, não evitou o ataque de Março de 2011 sobre os ordenadores de Bercy e do Eliseu, abrindo um debate inconcluso;
5.     O recurso dos Estados é o princípio da precaução, que não implica, como está confirmado, que seja produto de uma racionalidade eficaz;
6.     Tais atitudes, seja qual for a natureza, implicam uma redefinição das relações internacionais, uma toma atempada e honesta de informação, bases de dados acessíveis, partilha de previsões, seguranças comuns, reforço da segurança das instalações atómicas militares e civis. Poderiam ser acrescentadas facilmente outras exigências.

Não conseguimos ainda uma atitude coordenada dos Estados para tais catástrofes, mas a exiguidade do Estado soberano para as enfrentar é facilmente demonstrada, nos casos que se multiplicam, embora também seja suficientemente conhecida a sua capacidade de os produzir. O resultado, sublinhado por Lesourne e Broughton (loc. cit.) será que “o perigo da subversão que espreita o Estado na questão das catástrofes naturais será talvez mais de investigar nas consequências políticas de tais acontecimentos do que nos seus manifestos políticos, falando francamente”.

2 – Mas se isto diz respeito às grandes potências, tal como aconteceu no passado, que dizer dos pequenos Estados que fizeram parte da ordem mundial que as guerras mundiais, e a anarquia posterior que conduziu à atual catástrofe económica e social, transformaram na debilidade presente, que os submeteu à evolução para Estados exíguos, isto é, cuja relação entre capacidades e objetivos da organização, tende para ser progressivamente deficitária? Portugal é infelizmente um exemplo, que há muito se evidenciava, não tendo faltado apelos, na última década, para que a situação fosse assumida numa relação de diálogo sem ambiguidades entre detentores do poder e sociedade civil.

Nesta entrada do milénio, o sinal mais evidente da exiguidade está na situação de protetorado em que se traduz o aprovado acordo com a brevemente chamada troika, e que coloca o governo a gerir um programa mais imposto que negociado. Trata-se apenas de um sinal de evidência de mudança, espera-se que ultrapassável, do estatuto de soberania do século XX, que já era funcional ou cooperativa pela definição da União Europeia, mas, no conceito desta, em condição de igualdade agora perdida.

Depois, a perda da constitucionalidade soberana inviolável, que tem demonstração na expropriação de direitos possuídos pelos servidores do Estado, na afirmação de que os direitos adquiridos são recordações perdidas, na afirmação de que a constitucionalidade dos princípios pode ser submetida a regras das rebus sic stantibus.

O país teve experiência no passado de ser governado de facto por estrangeiros: foi assim com a Dinastia Filipina, com a intervenção de Wellington fisicamente sentado no trono do Rei ausente no Brasil, na presença ditatorial de Beresford nos 10 anos em que se incluiu o enforcamento dos Mártires da Pátria e do General Freire de Andrade, e ainda, sem necessidade de caricaturar, os anos em que, depois do ultimatum de 1890, a imagem de Portugal no mundo foi a de colónia da Inglaterra.

A sociedade civil reagiu em termos de refundar o Estado – com pesados tributos, incluindo vidas, futuros e bens, dos cidadãos, mas devemos esperar que essa infeliz experiência mantenha hoje a racionalidade no comando da reconstrução. Porque o facto não pode ser descurado: o despovoamento, a crise da agricultura abandonada, o mar esquecido nas preocupações nacionais, a emigração dos melhores na busca de futuro, e também dos menos habilitados em busca de subsistência, o descrédito de instituições como a justiça, a segurança, incluindo as insuficiências das Forças Armadas e de Polícia, a criminalidade, a falta de confiança política, a declarada incapacidade de corresponder à dimensão constitucionalmente assumida do Estado social, e finalmente, o facto de a fronteira da pobreza, que o PNUD ainda no século passado colocava pelo sul do Sara, ter ultrapassado o Mediterrâneo e incluído Portugal, tudo são claras demonstrações de um Estado exíguo, porque as suas capacidades são deficitárias em relação aos objetivos para que foi criado e que constitucionalmente assumira. No passado, foi a sociedade civil que refundou o Estado, por vezes com custos humanos e materiais inaceitáveis. Dessa experiência podemos concluir que a solidariedade e vontade da sociedade civil é de intervenção exigível, e indispensável, mas que a razão não pode ser ultrapassada, e a esperança não pode ser perdida.

Faculdade de Letras de Lisboa
15/05/2012