Comunicação do Sr. Professor Doutor Adriano Moreira, proferida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no dia 15-05-2012, no âmbito do ciclo de conferências A Europa, uma ideia em construção. - As confluências possíveis num espaço heterogéneo.
A CIRCUNSTÂNCIA DO ESTADO EXÍGUO
ADRIANO MOREIRA
Presidente da Academia das Ciências de Lisboa
Presidente do Conselho Geral
da Universidade Técnica de
Lisboa
1 – Os desafios à invenção.
A entrada no novo milénio tornou aguda uma interrogação,
que passeava discreta pelos textos académicos, sob a designação frequente de –
crise do Estado. Muito rapidamente, as circunstâncias mundiais obrigaram a
abandonar a discreta atitude crítica, para abertamente discutir se o Estado é
uma invenção desafiada pelos factos.
Apenas por lembrança, e para ajudar a clarificar o tema,
recordemos que o Estado evoluiu em termos de, desde o Renascimento, se
caracterizar por um poder a que chamou soberania e que se analisava na definição
de um conjunto convergente de capacidades, designadamente militares, económicas
e financeiras, com o recurso jurídico da defesa da jurisdição interna que de
facto defendia, os mais frágeis, embora fragilmente, de abusos.
Por muito que os esforços de teólogos, moralistas e
juristas, procurassem que um normativismo respeitado assegurasse um comércio
pacifico entre os poderes políticos, recorrendo designadamente à hierarquia
respeitada, com expressão nos títulos – Imperador, Rei, Grão-Duque, Duque,
Conde reinante, etc. – ou às dependências aceites – vassalagem, tributo,
protetorado – o primeiro grande esforço a assinalar, que perdurou com relativo
êxito até hoje, foi o de considerar a paz
como o valor cimeiro de toda a organização, e portanto a paz pelo direito, sem
recurso à força, e essa foi a contribuição dos chamados utopistas.
É justamente quando o Renascimento aponta para a soberania
absoluta, que as três utopias mais famosas aparecem: Thomas Morus, que no
século XX subiria aos altares católicos pela voz de João Paulo II, com a sua
Utopia, aparecida um ano antes das 95 Teses de Lutero; Tomaz Campanella, com a Cidade
do Sol, cem anos depois de Morus, e Francis Bacon com a Nova Atlântida. Para
não alongar a referência, talvez valha como síntese comum a passagem em que
Morus declara o regime que procura abolir: por toda a parte, afirma o chanceler
experiente e desacautelado de Henrique VIII, “uma certa conspiração dos ricos
trabalha contra os pobres”, o que não dava credibilidade à afirmação de que o
Estado devesse ser considerado uma Respublica,
isto é, como comunidade consolidada pelo bem comum. No fundo, era o conceito nascente
de sociedade civil, que levaria ainda
séculos a afirmar a sua identidade, e que neste século XXI parece levantar-se
contra o Estado, quer no Ocidente que tão longamente se concebeu e afirmou como
império do mundo, como por regiões apenas recentemente libertadas do colonialismo,
mas não da técnica, como acontece pelo cinturão muçulmano a começar no
turbilhão do Mediterrâneo, por muitos países recentes de África, pelo Oriente renascido
para disputar hegemonias.
Este objetivo dos modelos daquilo que chamamos hoje sociedade
civil, tem por exemplo definição nesta passagem de Campanella (A cidade do Sol,
1623), destacada por Jacques Batzun (Da Alvorada à Decadência, Gradiva, Lisboa,
2003): “Em Nápoles vivem 70.000 almas e, destas, umas escassas 10.000 ou 15.000
fazem algum tipo de trabalho, e estão sempre magras do trabalho em excesso, as
restantes tornaram-se presas da ociosidade, da avareza, da falta de saúde, da lascívia,
da usura e outros vícios, e corrompem muitas famílias sujeitando-se à servidão
para seu próprio interesse”. Talvez não seja difícil encontrar uso para estes
termos na linguagem política da crise de hoje, em que a sociedade civil parece crescentemente
disposta a reclamar uma relação de confiança com o Estado, que será para isso reformado,
e adaptado às novas circunstâncias.
Para isto contribuíram talvez mais, no que toca à
doutrina, os teóricos da paz, doutrinadores
de uma organização normativa dos vários poderes políticos, que impediria os
conflitos armados das soberanias, de que os utopistas, que sem conseguirem afirmar
o oferecimento deste patamar, também não contribuíram para que a vida justa e
pacifica da sociedade civil fosse liberta da essência do Estado que conheceram:
uma distinção entre fortes e fracos, entre os que mandam e os que obedecem,
entre os privilegiados do poder e os desmerecidos. As tentativas experimentadas
no século passado conduziram às mais destruidoras das guerras registadas pela
história (1914-1918 – 1939-1945) e nenhuma delas conseguiu que o sofrimento
partilhado por todas as áreas culturais conduzisse à eficácia esperada quer pela
SDN, quer pela ONU, embora a lembrança de Kant estivesse sempre presente.
Pelo contrário, aquilo a que assistimos foi ao crescente divórcio
e distância entre a realidade e as convicções das potências que supuseram ter
ganho a guerra de 1939-1945, em que de facto todo o globo perdeu, e as mudanças
da circunstância mundial, ou global para atualizar a semântica, em que nos
encontramos vão agravando.
Não obstante a proclamação de igualdade dos Estados na
Carta da ONU, o Conselho de Segurança reuniu uma aristocracia de 5 membros, que
supunham ter mantido as capacidades hegemónicas que antes da Guerra as
distinguiam: sem ignorar a hierarquia entre os cinco, com distinção clara para
os EUA e a URSS, mas a França que outros libertaram, e a Inglaterra reduzida a
uma ilha relutantemente a aproximar-se do movimento europeu, não podiam ser equiparadas
às outras duas com o direito de veto, como se ainda tivessem qualquer
capacidade de impor uma hegemonia mundial: a China, da qual ninguém imaginou o
crescimento futuro, foi ofensivamente substituída, com nome suposto, pela ilha
de Taiwan.
Este desencontro com a realidade viria a traduzir-se no
desastrado unilateralismo republicano dos EUA, e na crise financeira e
económica que atingiu todo o Ocidente, cujos Estados, sem exclusão dos EUA,
finalmente atingidos pela realidade da conjuntura, se viram substituídos por
uma multiplicação de poderes ou anónimos ou não previstos por qualquer tratado,
como aconteceu com o afamado G20 e o desconhecido diretório financeiro mundial
que desafia os governos, determina o presente degradado e o futuro incerto das
populações, estabelece novas hierarquias entre as quais se destaca o Protetorado sem verdadeiramente se
conhecer o suserano, como acontece com o estatuto a que Portugal foi conduzido.
Os intitulados fundadores, por decisão própria, superpotências,
a começar pelos EUA e, mesmo não querendo, a solidária Europa, estão obrigados
a repensar o seu verdadeiro poder, porque o Afeganistão, o Iraque, o turbilhão
do Mediterrâneo, a desordem de África, a fragilidade da América Latina, e a
sobranceria com que todos lhes respondem, já são demonstrações suficientes de
exiguidade perante a circunstância mundial. Por isso Barack Obama, em 13 de
Abril de 2011, declarou ser “necessário iniciar um processo de exame profundo e
de revisão do papel militar dos Estados Unidos no mundo, das missões das suas
forças armadas e das capacidades exigidas para as levar a bom termo”. Quando pensamos
em Estados como Andorra, Mónaco, Liechtenstein, em pleno Ocidente, todo este em
decadência, podemos ter a impressão de que subsistiram, na época das soberanias
absolutas, apenas para anunciarem modelos de futuro.
Talvez a primeira manifestação política da exiguidade do
Estado esteja na necessidade assumida de se organizarem em grupos, uma
designação científica ainda mal assumida, mas suficientemente identificada,
para intervir na cena mundial. Os próprios EUA, não obstante manterem a
convicção de serem a nação indispensável, a casa no cimo da colina, talvez já
tenham compreendido o erro de quebrarem a unidade da NATO com o unilateralismo
republicano, tentam dar vida à ALENA (EUA, Canadá, México) não obstante os
problemas da fronteira do Rio Grande, redescobrem que o Pacífico é o seu mar
histórico, procuram uma aproximação com a China, porque o Pacífico tem de ser
dividido. É por isso que a Europa ou salva a unidade ou deixa de ter voz no
mundo, porque nenhum dos países da União, nem mesmo a Alemanha, esquecida do
seu passado recente, tem voz que se possa fazer ouvir do Atlântico aos Urais, ou
no Conselho de Segurança: ou estará a Europa unida, ou a sua voz não será escutada
em parte alguma.
Mas esta urgente meditação não se limita aos Estados que
perderam estatuto na ordem mundial atingida mortalmente pelas guerras chamadas
mundiais e que foram apenas guerras civis dos ocidentais: de facto é uma
meditação exigida por todos os Estados, atingindo o próprio conceito de Estado.
Em primeiro lugar, os avanços da ciência sem qualquer
precedente equivalente no passado, e a interferência da técnica igualmente a
decorrer nesse ambiente de falta de precedente, desafiam a capacidade de numerosos
Estado, tal como os conhecemos ainda na viragem do milénio, em face dos
desafios da própria natureza, cujos deuses parecem ter decretado a guerra total:
lembra a catástrofe terrível de Fukushima, o terramoto, o tsunami, o desastre
nuclear, o golfo de Bengala com igual catástrofe natural, o golfo do México,
Chernobyl, a fome no sul do Mediterrâneo e a ultrapassar a fronteira europeia
desse mar, tudo acontecimentos a provocarem perdas de vidas, de bens e de
futuros, sem dimensionamento possível, as exigências de ajuda a ultrapassarem
as capacidades mundiais disponíveis, o terrorismo com expressão no 11 de
Setembro de 2001, e as suas reproduções em mais de uma das grandes cidades
mundiais.
É evidente que não podemos esquecer o terramoto de 1755, mas
as multidões atingidas nunca foram tão numerosas, os bens materiais perdidos
nunca foram tão avultados, as espécies eliminadas nunca foram tão numerosas, as
perplexidades sobre o futuro do homem sobre a terra, e da terra morada comum
dos homens, nunca foram tão profundas.
Seguindo a enumeração equilibrada de Jacques Lesourne (L´État submergé, Ramsès, 2012, pg. 89), podemos notar as
seguintes exiguidades dos Estados, em relação ao que conhecemos deles ainda no
século XX:
1. Os
Estados não são iguais nas suas capacidades de enfrentar os acontecimentos
desastrosos, dispondo em regra de recursos financeiros escassos e de
capacidades técnicas e científicas limitadas;
2. Os
conhecimentos científicos e técnicos, mesmo partilhados pela humanidade, são
insuficientes para as previsões das supercomplexidades da circunstância global;
3. Tem
algum arbítrio distinguir as catástrofes industriais, naturais, de pandemias,
ou do descontrolo técnico, etc., porque é frequente a interinfluência e
interdependência dos fatores diversos que provocam as catástrofes;
4. O
desenvolvimento da técnica, com efeitos mal sabidos sobre a saúde, não evitou o
ataque de Março de 2011 sobre os ordenadores de Bercy e do Eliseu, abrindo um
debate inconcluso;
5. O
recurso dos Estados é o princípio da
precaução, que não implica, como está confirmado, que seja produto de uma
racionalidade eficaz;
6. Tais
atitudes, seja qual for a natureza, implicam uma redefinição das relações
internacionais, uma toma atempada e honesta de informação, bases de dados
acessíveis, partilha de previsões, seguranças comuns, reforço da segurança das
instalações atómicas militares e civis. Poderiam ser acrescentadas facilmente
outras exigências.
Não conseguimos ainda uma atitude coordenada dos Estados
para tais catástrofes, mas a exiguidade do Estado
soberano para as enfrentar é facilmente demonstrada, nos casos que se
multiplicam, embora também seja suficientemente conhecida a sua capacidade de os
produzir. O resultado, sublinhado por Lesourne e Broughton (loc. cit.) será que
“o perigo da subversão que espreita o Estado na questão das catástrofes
naturais será talvez mais de investigar nas consequências políticas de tais
acontecimentos do que nos seus manifestos políticos, falando francamente”.
2 – Mas se isto diz respeito às grandes potências, tal
como aconteceu no passado, que dizer dos pequenos Estados que fizeram parte da
ordem mundial que as guerras mundiais, e a anarquia posterior que conduziu à
atual catástrofe económica e social, transformaram na debilidade presente, que
os submeteu à evolução para Estados
exíguos, isto é, cuja relação entre capacidades
e objetivos da organização, tende
para ser progressivamente deficitária? Portugal é infelizmente um exemplo, que
há muito se evidenciava, não tendo faltado apelos, na última década, para que a
situação fosse assumida numa relação de diálogo sem ambiguidades entre detentores
do poder e sociedade civil.
Nesta entrada do milénio, o sinal mais evidente da
exiguidade está na situação de protetorado
em que se traduz o aprovado acordo com a brevemente chamada troika, e que
coloca o governo a gerir um programa mais imposto que negociado. Trata-se
apenas de um sinal de evidência de mudança,
espera-se que ultrapassável, do estatuto de soberania do século XX, que já era
funcional ou cooperativa pela definição da União Europeia, mas, no conceito
desta, em condição de igualdade agora perdida.
Depois, a perda da constitucionalidade
soberana inviolável, que tem demonstração na expropriação de direitos possuídos pelos servidores do Estado, na
afirmação de que os direitos adquiridos
são recordações perdidas, na afirmação de que a constitucionalidade dos princípios pode ser submetida a regras das rebus sic stantibus.
O país teve experiência no passado de ser governado de
facto por estrangeiros: foi assim com a Dinastia Filipina, com a intervenção de
Wellington fisicamente sentado no trono do Rei ausente no Brasil, na presença
ditatorial de Beresford nos 10 anos em que se incluiu o enforcamento dos
Mártires da Pátria e do General Freire de Andrade, e ainda, sem necessidade de caricaturar,
os anos em que, depois do ultimatum de 1890, a imagem de Portugal no mundo foi a
de colónia da Inglaterra.
A sociedade civil reagiu em termos de refundar o Estado –
com pesados tributos, incluindo vidas, futuros e bens, dos cidadãos, mas devemos
esperar que essa infeliz experiência mantenha hoje a racionalidade no comando da
reconstrução. Porque o facto não pode ser descurado: o despovoamento, a crise
da agricultura abandonada, o mar esquecido nas preocupações nacionais, a emigração
dos melhores na busca de futuro, e também dos menos habilitados em busca de
subsistência, o descrédito de instituições como a justiça, a segurança,
incluindo as insuficiências das Forças Armadas e de Polícia, a criminalidade, a
falta de confiança política, a declarada incapacidade de corresponder à
dimensão constitucionalmente assumida do Estado social, e finalmente, o facto
de a fronteira da pobreza, que o PNUD ainda no século passado colocava pelo sul
do Sara, ter ultrapassado o Mediterrâneo e incluído Portugal, tudo são claras
demonstrações de um Estado exíguo, porque as suas capacidades são deficitárias
em relação aos objetivos para que foi criado e que constitucionalmente assumira.
No passado, foi a sociedade civil que refundou o Estado, por vezes com custos
humanos e materiais inaceitáveis. Dessa experiência podemos concluir que a
solidariedade e vontade da sociedade civil é de intervenção exigível, e
indispensável, mas que a razão não pode ser ultrapassada, e a esperança não
pode ser perdida.
Faculdade de Letras de Lisboa
15/05/2012
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